segunda-feira, 1 de abril de 2013


TEMPO DE PALAVRA

Parte 1: A Palavra

Palavra

Há palavra para tudo
(para o silêncio inclusive).
A palavra terá tempo, 
o tempo dos anos,
              dos séculos, 
              dos milênios,
              da eternidade...
A palavra refará o tempo,
                 erguerá o homem, 
                              os poetas,
                               a poesia;
                 desfará o caos,
                 romperá o impossível.

A palavra tem limite.
O homem será ilimitado
na limitação da palavra.
A palavra não oprimirá 
nem aprisionará o homem,
antes o libertará.
O homem libertará a palavra do ranço.
                 se edificará sobre sua palavra,
                 viverá por ela,
                 por ela morrerá.

Valerá o homem pela sua palavra.
Imitaremos Deus:
construiremos o mundo com palavra
e ela manterá a ordem universal.
Plantaremos a palavra,
regaremos a palavra,
colheremos a palavra.

A palavra não será deificada,
canonizada;
nem a santa palavra.
Não socializaremos a palavra,
não capitalizaremos a palavra,
não comercializaremos a palavra,
não estatizaremos a palavra,
não censuraremos a palavra,
não aprisionaremos 
nem ocultaremos a palavra nos dicionários,
                                            nos livros,
                                            nas mentes,
                                            nas bocas,
                                            nos códigos,
                                            nas celas,
                                            nas placas,
                                            nas canetas.
Toda palavra nascerá 
e será exposta aos homens.
A palavra será livre,
não será monopolizada.
A palavra será universal.
Não haverá leis para a palavra
(os gramáticos que se arranjem).
Não sepultaremos a palavra nos cemitérios.
Não encheremos a palavra,
não a esvaziaremos.
Não usaremos armas;
antes, palavra.

A palavra não será discriminada;
é digna.
O gênero da palavra não será o gramatical.
Não escreveremos o Código Internacional da Palavra.
As últimas palavras sobre a palavra
não serão das academias,
                 dos dicionaristas,
                 dos escritores.
Aliás, não haverá isso de últimas palavras
sobre as coisas.
A palavra sempre ficará em aberto...
Não estabeleceremos a ditadura da palavra.
A palavra não será capitalista,
                               comunista,
                               socialista,
                               anarquista...
A palavra será a palavra.
E quando chegar o tempo
(se esse tempo chegar)
em que nada puder fazer a palavra,
silenciaremos.
A palavra respeita o silêncio 
e nasce dele.
Uma utopia: chegaremos ao tempo
do domínio universal da palavra.
A palavra unirá os homens,
não mais os separará.
(Tenho medo de ficarmos na utopia.)


Profecia poética

O mundo está  tão diferente!
Os poetas também!
Os poetas já não são de um livro inteiro,
                                  de um poema todo.
Hoje são os poetas de meio poema,
                                    meio verso,
                                    meia frase,
                                    meia palavra.
Logo serão os poetas de palavra nenhuma.


Explosão

O povo tem sede,
sede de palavras, 
palavras reais,
              eternas, 
sede de metáforas.

O povo bebe a poesia do poeta
que foi bebido
e explode o mundo.
A palavra e as metáforas estão no ar.

Parte 2: O Tempo

Tempo 1

Este tempo
é um tempo de homens inteiros,
que de tão inteiros
são cacos,
rotos.
Este tempo
é um tempo de homens sábios,
que de tão sábios
enlouqueceram,
destruíram-se.

Tempo 2

Tempo,
rio no qual vivo,
descendo,
subindo.
Não posso fazê-lo,
                  mudá-lo,
                  encurtá-lo,
                  alongá-lo.
Eu sou o que faço do tempo,
e se do tempo nada faço,
de mim ele faz nada.

Memórias

Não é esta a estrada
por onde passaram meu passado,
                               meus pés,
                               meus cavalos,
                               meus bois,
hoje trilhada por sombras diáfanas?
Hoje o tempo se desenrola,
vira anos
       dias,
       horas,
       minutos,
e são os mesmos passos
(trôpegos talvez),
o mesmo passado,
os mesmos pés,
os mesmos cavalos,
os mesmos bois,
a mesma estradinha.

O tempo se aprofunda
e as sombras crescem,
crescem,
crescem...
e enchem a fazenda,
                a cidade,
                o país, 
                o mundo,
                o universo, enfim.

Maquiagem

Virão outros tempos,
         outros poemas,
         outras histórias,
         outros países,
         outros heróis,
         outros homens,
         outras leis,
         outros livros,
         outros poetas
(e os poetas imortais
se consumirão nos túmulos).
Vindo outros tempos,
seremos outros.
Se não nos transformarmos
nos transformará o tempo.

Sombras

A noite acaba de chegar
(não quero olhar o relógio)
e sob as luzes
os homens se comprimem.
Muitos se envolvem no ar,
movem-se como penas;
outros não suportam tantos planetas.
Daqui não vejo os passos,
as rodas;
só sombras.
Às vezes são mais sombras
do que gente.

Lá fora são sombras,
aqui dentro o relógio é objeto.
Avidez pela passagem rápida do tempo!
Mas ele apenas pinga
lentamente...
infinitamente...
e este líquido já tomou a casa,
                                    a rua,
                                    tudo, enfim.

Viver

Vivemos na memória,
nos sonhos
do que não somos
porque não fomos
porque o tempo nos impediu...
O bloqueio do tempo!
Vivemos de lembrar;
um pé atrás.

Eternidade

Há séculos
essa foto pendurada na parede.
Nessa foto, Deus,
há séculos
que essas pessoas sentadas
ao lado da igreja
são as mesmas,
com caras diferentes.
... bisavós, avós, pais...
que diferença?
Aproximo-me do retrato
e num truque fotográfico
entro nele.
Faço parte do passado,
imobilizado;
do futuro.

Casa da poeira

Esta casa
vem de séculos,
dos meus antepassados;
é a casa da poeira,
a poeira do mundo
que entra
e assenta sobre nós.
Quantas gerações empoeiradas!

Relógio

Se o homem não vivesse
sob o peso do relógio!
Sono com relógio,
feijão com relógio,
água com relógio.
Preso entre os ponteiros,
          entre os pêndulos,
          entre os números
dos relógios digitais.
O homem mede o tempo,
o tempo divide o homem.

Ontem:
horas,
minutos,
segundos.
Hoje:
décimos,
centésimos,
milésimos de segundo.
Amanhã,
isto: ?
Parte 3: O Homem


Equação fundamental do homem

Com quais incógnitas
escreverei a equação do homem?
É ele x, y, z?
Que desconhecido 
do homem
procuro saber?
Qual quê?
Quantos quês 
tem dentro de si?
Têm resposta os quês
do homem?
Quem pode calcular
o homem,
seu valor?
Tem valor o homem?
Sabe o homem calcular o homem?
O computador?
Escondeu-se o homem
atrás de x, y, z?
Ironia da vida!
Matemáticos,
trabalhem com fervor!


Matemática elementar

A matemática começou a vida:
o homem somou-se,
                multiplicou-se,
                dividiu-se, 
                diminuiu-se.
A gramática a conclui:
ponto final.


Geometria plana e espacial

O homem se enclausurou em si,
em casa,
na rua,
na cidade,
nos compêndios de geometria,
nas figuras planas,
nas espaciais,
na esfera onde vive
(o homem enclausurou a esfera
em que vive),
no infinito.
Poderá o homem
enclausurar o infinito?


Elegia do Brasil

Pedem-me uma epopeia,
a epopeia brasileira.
Mas quem sou,
afinal,
para escrever a epopeia do Brasil?
Que peso (eterno?) é este,
meu Deus,
que puseram sobre mim,
de escrever a epopeia deste país
cujas origens desconheço
e cujo fim posso supor?
Que guerras vivi,
lutei,
sofri,
tão carente de passado
(e de futuro)?

Chega a noite
e vãmente me lembro
de cartas geográficas,
     mares,
     navios,
     conquistas,
     guerras,
     nomes, 
     livros de História...
e me entristeço grandemente.

Não nos lançamos ao mar.
(Não havia mar?)
Não fomos à guerra.
(Não havia guerra?)
Não nos lançamos a nada
e a nada chegamos.

É já noite
e sonho.
Mas os sonhos não fazem epopeias!
Nada poderei escrever
senão uma elegia, 
a elegia de minha terra.
As letras caindo no papel,
o peso diminuindo,
me endireito,
posso ver o céu.
Sou um homem preso à terra,
à terra dos homens sem epopeia.


Sonhos

É tarde no país,
e durmo, 
durmo profusamente,
e sonho,
sonho profusamente
o sonho das crianças sem sonho,
              dos homens sem sonho,  
              das mulheres sem sonho,
o sonho do país sem sonho.


A grande revolução

Marcharemos em tanques
pelas ruas e estradas do mundo
e derrubaremos ditaduras.
Respeitaremos sinais de trânsito,
direitos alheios.
Usaremos armas;
nossas armas: o silêncio.
Não se ouvirão tiros,
não haverá toque de recolher,
as liberdades individuais não serão suspensas.
Daremos golpes de estado onde houver ditaduras.
...............................................
Mas antes de sairmos nessa marcha,
empunharemos nossas armas
e lutaremos decididamente
para destruir o Grande Ditador
que há em cada um de nós.
Quem estiver pronto se apresente!


Engenho novo

Já não há mais cana
para o engenho do homem,
não há mais homem 
para o engenho de cana,
não há mais cana 
para a máquina do engenho,
não há mais máquina
para o engenho do homem,
não há mais engenho
para o homem da máquina,
não há mais engenho
para a máquina do homem.
Só há um engenho sem cana
em que homens, mulheres e crianças
são moídos.


Reflexão

Ser

homem.
Ser
homem.
Só.
Dia após dia
o homem
enche
o mundo
e se esvazia.
Ser
homem
no mundo
hoje:
no tudo
ser nada.
Só!


Maria

                          "Há mais Marias na terra.
                                      Tantas que é um não acabar."
                                                           Manuel Bandeira                       

Há tantas Marias no mundo
e hoje nasceu mais uma:
Maria Luíza.
Tantas Marias,
todas Marias,
todas iguais,
todas distintas.

Há Marias para todos os gostos.
Marias de todos os tipos,
            de todas as cores,
            de todos os níveis,
            de todas as raças,
            de todas as línguas,
            de todos os pesos,
            de todas as estaturas,
            de todas as idades.

Marias do povo,
Marias da História,
Maria-presa,
Maria-livre,
Maria-mole,
Maria-forte,
Maria-poeira,
Maria-homem,
Maria-mulher,
Maria-bode-expiatório-do-mundo,
Maria-de-todos-os-homens,
Maria-do-mundo,
Maria-de-todas-as-dores,
Maria-da-morte,
Maria-das-horas-infinitas-de-choro-
e-tristeza-nas-noites-de-vela.

Maria é um mundo.
Sem Marias, como seria o mundo?
Quem não queria ser Maria?
Nos censos são Marias, marias...
Em casa é MARIA, 
talvez Mariazinha, Mariinha, Mariquinha...
Não sabemos quanto dói ser Maria.

Maria,
Maria-poema,
Maria-poema-do-mundo.

Poema-pontuação

Os poetas empacaram nas vírgulas,
                                     nos pontos e vírgulas,
                                     nos dois pontos,
                                     nos pontos de exclamação,
                                     nos pontos de interrogação,
                                     nas reticências,
                                     nos travessões.
Os poetas estão entre parênteses,
                           entre colchetes,
                           entre aspas.
Precisamos libertar os poetas
e esconder os sinais de pontuação.
Um poema assim,
com que sinal acabar?


Notícia policial 

Sequestraram o poeta.
Resgate:
um bilhão de versos.


Viagens

Nas tardes chuvosas viajo.
Quantas vezes rodeei o mundo!
Finda a chuva,
a tarde,
o tédio,
ficam os países,
as cidades,
as ruas,
os nomes...
Atlas fechado,
noite chegada,
começo nova viagem,
a viagem inominável
de todos nós.
Sem atlas.


Busca

Ainda não caminhamos
todos os caminhos existentes
e já queremos novos caminhos.
Assim,
morreremos fartos de caminhos
e carentes de caminhar.
Ufa!
Basta uma eternidade para recomeçar
e caminhar até aqui.


Escuridão

Apagadas as luzes,
que escuridão é esta,
meu Deus,
que tanto faz
estar de olhos abertos ou fechados?
Palpável,
posso pegá-la,
ensacá-la.

O fim dela está aqui mesmo,
à mão:
um fósforo, uma vela.
Enquanto não estendo a mão
há dois objetos aqui
(a cama e a escuridão)
e eu,
maior que a escuridão.


Sinfonia dos sapos

À margem das águas frias,
paradas,
coaxam os sapos freneticamente.
O universo contempla o coaxar dos sapos
nas noites infindas dos homens...
infinitamente...

Enquanto nos teatros
executam-se os clássicos,
 à beira dos ribeiros e lagoas
nos contentamos com a sinfonia dos sapos,
magistralmente!


Prisão

Enquanto os homens se algemam
na mente,
no quarto,
no elevador,
na rua,
na cidade,
no campo...
as fábricas unidas
produzem as algemas
que manterão algemado o mundo.
(Até que alguém o liberte.)


(......)

Há os que se vão,
os que chegam.
Nesta ânsia para chegar
(não há ânsia para ir)
despedaçam-se os pés,
                          as mãos,
                          o peito,
                          a cabeça.
Quanta ânsia partida
sem chegada!
Parece, Deus,
que nesta cidade só há dois seres:
a ânsia e o homem


Tempo dos nove

Você se lembra
do tempo dos meus nove anos?
Eu não sabia 
que o mundo era redondo;
também não fazia diferença:
vivia-se.
Eu não sabia
que o mundo continuaria mundo
se a gente morresse.
Você se lembra
de que aos nove anos
eu queria atravessar o rio de canoa,
                jogar bola,
                ir pra rua?
Não atravessei,
não joguei,
não fui:
vivi atravessado,
       jogado,
       ido.
É bom aos nove anos
não saber o tamanho da Terra,
para não fazer comparações;
os sonhos dos nove anos são tão grandes,
                                                 tão grandes...
que poderiam inundar o planeta.
(E haveria arca nos meus nove anos?)
Mas foram meus sonhos
que se afogaram
nos sonhos diluvianos
da gente grande dos meus nove anos.
Eu não sabia da arca,
não houve arca.
Sobrevivi.
Aos nove anos é bom
não saber que se vai crescer!
Perde-se tanto pensando na gente 
que não seremos!

Os historiadores não escrevem a história dos meninos
de nove anos;
um dia, porém,
estes meninos explodem a História.

Metamorfose

Vivendo,
minhas pedras se tornaram águas.
Vivendo,
minhas águas se tornaram gases.
E eu,
que ao nascer era pesado,
vou por aí como nuvens diáfanas.


O sonho de Atlas

Atlas já não suporta o mundo;
está de joelhos.
Rapidamente o põe no chão,  
deita-se, 
dorme profundamente...
e o mundo rola, 
                  rola,
                  rola...
e Atlas sonha com um outro mundo,
leve,
leve como no dia 
em que o tomou sobre si.


Pedra

Puseram pedras nos caminhos dos homens, 
puseram uma pedra no caminho do poeta.
Venho de limpar os caminhos,
remover as pedras,
hoje.
Removidas as pedras,
os homens continuarão tropeçando.
Há uma pedra,
uma pedra em cada um,
que não posso remover.


Vida resumida

Toda a minha vida 
cabe num poema.
Poema de uma palavra
ou de milhares de palavras.
Pequeno demais,
não omitirá nada;
grande demais,
não falará tudo.


Concepção

Uma pessoa,
um objeto,
uma palavra,
um mundo.
Princípio sem fim...


Partidas

Os caminhos me compelem;
é preciso partir.
Os caminhos são muitos,
a vida é pouco.
Partir sempre,
chegar às vezes.
A vida é partir.
Quantas vidas partidas,
quantas partidas sem vida.

E eu,
de tantas partidas,
poucas chegadas,
que sou hoje
(tantos pedaços perdidos
nos caminhos esquecidos)
senão estes cacos restantes,
empoeirados, 
que rangem
e acordam o mundo?


Passagem

Homem do mundo,
homem no mundo,
de onde vem?
Vindo,
não sabe de onde veio.
Vem?


Nova ordem

Os homens se movem no caos.
Presos a uma lei
da qual não têm consciência,
cegamente
seguem caminhos de olhos abertos.
Na anarquia universal dos homens
há uma ordem secreta
que os contamina e guia
pelas órbitas circulares do ontem,
                                      do hoje,
                                      do amanhã.
São múltiplos os caminhos,
                      as verdades,
                      os mundos.
Aguardamos a nova ordem
enquanto os homens se curvam.


Perdas

Nas mudanças
tantas coisas se perdem
(se ganham?)!
Livros,
tempo,
dinheiro,
pedaços, 
pedaços de mim.
A cada mudança sei mais,
sou menos eu.
Quantas mudanças mais
e não mais serei?


Ócio

Na era do ócio
os homens ociosos
enchem de ócio
o tempo ocioso.


Recordações

Este sentado sou eu,
que fui,
não sou,
não serei.
Deste livro
saem as histórias
que não vivi,
que não acabam mais.
A história maior,
que não conto,
é a que hoje mancha a parede.
Apenas o tempo e esta moldura seguram
esta história. 

(Registrado na Biblioteca Nacional)